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Silêncio cósmico

Pudera eu regressar ao silêncio infinito,

ao cosmos de onde vim.

No espaço interestelar, vazio, negro, frio,

havia de soltar um grito bem profundo

e assim exorcizar todas as dores do mundo.

Regina Gouveia

NOVO BLOGUE

Retomei o blogue que já não usava há anos.

https://reflexoeseinterferncias.blogspot.com/

Dedico-o essencialmente aos mais novos mas todos serão bem vindos, muito em particular pais, avós, encarregados de educação, educadores ...


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Un Soir à Lima

Un Soir à Lima, é uma obra do compositor Félix Godefroid (1818 -1897). 

https://www.youtube.com/watch?v=7IKeNPNTTqg

Esta obra inspirou Pessoa que, com o mesmo título, escreveu um poema belo e longo.

(...) «Un Soir à Lima» (sugerido pela composição musical homónima — de Félix Godefroid —, que, ouvida na rádio, fez o poeta recordar-se dos serões em Durban, quando, ao piano, a sua mãe tocava o mesmo «Un Soir à Lima»). in 

O poema, do qual deixo excertos, pode ler-se aqui

UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiophonia e dá
A noticia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima“…
Cesso de sorrir…
Pára-me o coração…
E, de repente,
Essa querida e maldicta melodia
Rompe do apparelho inconsciente…
Numa memoria subita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar da Africa fazia
A encosta arborizada reluzente.
A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janella.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exactamente
“Un Soir à Lima”.
Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje ha
Que m’o recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.
Prossegue na radiophonia
A nossa, a sua melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.
Seu cabelo grisalho era tam lindo
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ella morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguem é homem para a sua mãe!
E inda atravez de lagrimas não falha
Á memoria que tenho
O recorte perfeito de medalha
D’aquelle perfeitissimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
(...)
Tudo isso vive em mim
Por luzes, musica e a visão
Que não tem fim
D’essa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da musica a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno d’esta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
(...)
Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa scena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num logar
Da alma onde ficasse possuida
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a familia e a paz e a musica que ha
Mas real como alli está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
Mãe, mãe, fui teu menino
Tam bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
(….)
Já que não tenho lar,
Deixa me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir —
Eu à janella
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da Africa ampla onde o luar está
Lá fóra vasto e indifferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.
(….)
E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)

Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha attenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.
(….)

Ouvi excertos do poema, pela primeira vez, ontem na Unicepe,  numa sessão inserida num conjunto de atividades, com início às 18h e 30 min

Ás 21h teve lugar a apresentação do livro RITUAL SEM PALCO, de Manuela Nogueira

Manuela Nogueira é sobrinha de Fernando Pessoa a “Pequena dos chocolates” do poema TABACARIA de que também deixo excertos

TABACARIA
    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    (...)
    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    (….)
    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    (...)
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    (….)
    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,


    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, 
    e o Dono da Tabacaria sorriu.
    Álvaro de Campos, 1928
A propósito da apresentação do seu livro , Manuela Nogueira falou sobre o  tio. Na impossibilidade de transcrever o que ouvi, “sirvo-me “ da Internet.

O meu tio Fernando era a pessoa a que eu achava mais graça no mundo. Que me divertia, que me dava carinho. Era rara a semana em que eu levantava o guardanapo, à hora de jantar, e não tinha lá de baixo um presente. E a emoção dele a olhar para mim ao ver-me radiante ao descobrir que estava lá um brinquedo — uma coisa qualquer — naquele guardanapo.  ….in 

Outras revelações podem ser encontradas aqui 

E a propósito das memórias que Manuela retém e partilha a respeito do tio, Valter Hugo Mãe refere


A lucidez de Manuela Nogueira, a capacidade de contar, o impressionante e impressionado detalhe com que fala da sua infância, é um meio de transporte.
Pousamos em cada palavra a caminho dos anos de 1930. Eu sei que os livros são gente e eles operam exactamente assim. Mas gente ser um livro é mais raro, especialmente se a história que nos conta vem de um tempo, ou de uma realidade, que julgávamos esgotada de discurso directo. Subitamente, alguém está verdadeiramente dentro de um segredo. Uma coisa de conhecer e sentir. 
in  
Público, 19/07/2015 
À apresentação do livro seguiu-se a apresentação de “...pessoas de Fernando

Constou de uma seleção de textos de Fernando Pessoa ( e seus heterónimos ) suportados por um ambiente sonoro/cénico que acompanhou as diversas leituras
num trabalho coletivo de Gil Milheiro, Manuela Melo, Margarida Dias, Miguel Fernandes.
Foi também um momento muito bonito que pecou pelo excesso de nível sonoro. A sala era pequena e a amplificação exagerada.

Aqui fica uma foto




E porque falamos de Fernando Pessoa termino com dois retratos da autoria de
Almada Negreiros





1954








1964










Estes retratos sugeriram-me, já há uns anos, o poema:


Martinho da Arcada.
Sentado a uma mesa, o Poeta.
Ao lado direito, a bica, o açucareiro
e o número dois da revista ORPHEU.
Na mão esquerda a cigarrilha.
A mão direita sobre uma folha de papel,
onde a caneta assenta.
Amarelo, negro, encarnado,
por entre a geometria.
Dez anos depois outro retrato,
quase uma simetria.
O amarelo, mais acentuado, realça o estro.
A mão direita segura a cigarrilha,
a mão esquerda pousa sobre a folha de papel.
Esquerdino, destro?

Regina Gouveia, não publicado